A dignidade da pessoa humana, a liberdade, a autonomia e o poder e na delimitação da missão das instituições de ensino superior
A dignidade da pessoa humana, a liberdade, a autonomia e o poder na delimitação da missão das instituições de ensino superior
Por: Raúl Capaz Coelho
As primeiras universidades foram criadas pelos religiosos católicos e, depois, pelas cidades na época medieval, sendo que tanto estas, como mais tarde as renascentistas, eram de proximidade entre mestres e estudantes, «partilhando as instalações e o saber com o pão e o livro, frequentemente em exemplar único», tendo constituído, porque se centravam na pessoa humana, nas maiores instituições para promover os homens das classes ditas inferiores aos cargos e às profissões de maior prestígio e elevação, como as de médico, de farmacêutico, de professor ou de «homens de leis».
Desde a sua génese as
universidades tiveram como seu substrato a pessoa humana e como principal
missão a transmissão do conhecimento, como modo de evolução e desenvolvimento
dos povos.
O artigo 1.º da Constituição
da República Portuguesa (CRP) de 1976 afirma que «Portugal é uma República
soberana baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada
na construção de uma sociedade livre, justa e solidária».
A pessoa humana não só
antecede a organização política, como as relações jurídico-sociais têm como fim
último a pessoa. Nesses princípios «radica a elevação da dignidade da pessoa
humana a trave mestra de sustentação e legitimação da República e da respetiva
compreensão da organização do poder político»[1].
O princípio da dignidade da
pessoa humana é, nos dias de hoje, não só no Ordenamento Jurídico português,
mas em diversos outros pelo mundo fora, uma norma central da estruturação
normativa dos catálogos de direitos fundamentais.
A dignidade da pessoa humana
«apresenta-se como ‘critério último’, apresentando-se como ponto de partida e
de chegada, presidindo nesse papel a todo o ordenamento constitucional, sede
onde se afirmam os direitos específicos de cada cidadão e são reconhecidos pela
sociedade. A dignidade humana constitui para nós um referencial e tal como
observa Jürgen Habermas, «é o sismógrafo que indica o que é constitutivo de uma
ordem jurídica democrática (…) o portal através do qual o conteúdo igualitário
e universalista da moral é importado para o direito»[2].
Numa outra perspetiva, no seu
processo de formação, a universidade surge, segundo Newton Sucupira, como
vontade de liberdade. Desde o início, a universidade teve bastante forte a
consciência de suas liberdades como condição fundamental de sua própria
existência. « [...]. Quando já nos fins da Idade Média, as universidades, como na
França, passam a ser inteiramente controladas pelo poder estatal, a perda de
sua autonomia coincide com o seu período de decadência, onde sem mais nenhuma
vitalidade nem força criadora de cultura, deixam elas de atuar no processo
cultural dos novos tempos...», citado
por Helena Bomeny, Newton Sucupira
e os rumos da educação superior. Brasília: Paralelo 15, Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior. 2001.
Do mesmo modo, a liberdade
constitui característica intrínseca à criação, manutenção e evolução da
universidade, hoje traduzida nos diversos tipos e graus de autonomia
constitucional e legalmente consagrados.
Sob a epígrafe «Universidade e
acesso ao ensino superior», o artigo 76.º da Constituição da República
Portuguesa (CRP), na redação que lhe foi conferida pela Lei Constitucional n.º
1/97, de 20 de setembro, dispõe:
«Artigo 76.º
(Universidade e acesso ao
ensino superior)
«1 — O regime de acesso à
Universidade e às demais instituições do ensino superior garante a igualdade de
oportunidades e a democratização do sistema de ensino, devendo ter em conta as
necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível educativo, cultural
e científico do país.
2 — As universidades gozam,
nos termos da lei, de autonomia estatutária, científica, pedagógica,
administrativa e financeira, sem prejuízo de adequada avaliação da qualidade do
ensino».
A CRP garante às
universidades, e só a estas, a autonomia em cinco dimensões fundamentais:
estatutária, científica, pedagógica, administrativa e financeira.
Porém, a autonomia, enquanto
característica jurídica intrínseca das instituições de ensino superior públicas
só adquiriu em Portugal, e apenas na vertente universitária, dignidade
constitucional com a 1.ª Revisão da Constituição, em 1982.
A autonomia estatutária, que é
por definição uma autonomia normativa, consiste na capacidade de
auto-organização e traduz-se no poder de definição da «organização interna»[3],
da «forma de governo»[4],
do «número e características das faculdades/escolas e cursos»[5],
entre outros, dentro dos limites da lei[6].
A autonomia científica,
enquanto faculdade de desenvolvimento da investigação científica, tanto
individual como institucional, envolve não só a liberdade de docentes,
investigadores e alunos (sendo por isso mesmo «corolário da liberdade de
criação científica»[7]constitucionalmente
prevista no n.º 1 do artigo 42.º), mas, também, a capacidade de selecionar
livremente áreas de investigação, de organizar projetos e custos de
investigação.
A autonomia pedagógica, que
está interligada com a liberdade de aprender e ensinar estabelecida no artigo
43.º da CRP, manifesta-se pela definição livre das formas de ensino,
compreendendo, designadamente, a criação, a suspensão e a extinção de cursos, a
aprovação dos planos de estudos, dos programas, dos conteúdos, dos métodos de
ensino, dos sistemas de avaliação de alunos e da distribuição de serviço
docente.
A autonomia administrativa,
que significa auto-administração através de órgãos próprios, traduz-se,
designadamente, na capacidade para a prática de atos administrativos
impugnáveis judicialmente.
Por fim, a autonomia
financeira compreende a capacidade de afetação de receitas próprias a despesas
também próprias e inclui, ainda, o direito ao financiamento público garantido,
definido segundo regras objetivas.
Como destacam Gomes Canotilho
e Vital Moreira[8],
«A autonomia universitária ‘comporta duas dimensões: (a) uma componente pessoal, que garante à comunidade
académica e aos seus membros a liberdade de ensinar e de investigar (autonomia
como garantia de direitos, liberdades e garantias individuais); (b) uma
componente institucional, que
consiste num direito fundamental da
própria universidade à autonomia’[9].
A autonomia universitária
abrange quer a universidade pública, quer a universidade privada, embora tenha
projeções diversas numa e noutra por força da diferente titularidade dos
estabelecimentos e dos reflexos que a mesma tem na dimensão da autonomia
garantida.
A Constituição só terá tido em
vista as universidades públicas, ‘visto que só em relação a elas é que pode
fazer sentido a autonomia estatutária, administrativa e financeira. Nas escolas
privadas, por efeito da autonomia privada, da liberdade de iniciativa e do
direito de propriedade, a definição dos estatutos dos estabelecimentos, bem
como a sua gestão administrativa e financeira, devem ser uma responsabilidade
da entidade titular’[10].
Ao contrário, ‘no que se
respeita à autonomia científica e
pedagógica, na medida em que se trata de garantias da liberdade académica
de ensinar e de investigar [...] devem valer em todas as universidades, mesmo
privadas (eficácia dos direitos
fundamentais entre privados), considerando-se como uma condição implícita
do reconhecimento oficial das universidades privadas’[11] ».
A autonomia universitária
constitucionalmente consagrada exerce-se nos termos da lei[12], o
que significa que, sem abalar o seu conteúdo essencial, aquela pode
delimitá-la, em termos variáveis, de acordo com os princípios e objetivos do
sistema de ensino, em cada momento definidos[13].
A esta exigência respondeu,
pela primeira vez, a Lei n.º 108/88, de 24 de setembro, que definiu e
desenvolveu os vários níveis ou componentes da autonomia e que, nos termos do
artigo 3.º, n.º 1, estabelecia que as universidades gozavam de autonomia
estatutária, científica, pedagógica, administrativa, financeira e disciplinar.
Posteriormente, pela Lei n.º
54/90, de 5 de Setembro, alterada pela Lei n.º 20/92, de 14 de Agosto, que
estabelecia normas relativas ao sistema de propinas, cujo artigo 17.º revogou a
alínea j) do n.º 2 do artigo 7.º da
Lei n.º 54/90, e pela Lei n.º 71/93, de 26 de Novembro, que aprovou o orçamento
suplementar ao Orçamento do Estado para 1993, cujo artigo 2.º, n.º 2, revogou o
artigo 43.º da Lei n.º 54/90, foi aprovado o Estatuto e Autonomia dos
Estabelecimentos de Ensino Superior Politécnico, aplicável exclusivamente aos
estabelecimentos públicos dependentes
do então Ministério da Educação (vide artigo
50º, n.º 1), e que atribuía a este
tipo de instituições de ensino superior, unicamente, autonomia estatutária,
administrativa, financeira e patrimonial (artigo 1.º, n.º 3), mas já não a
disciplinar.
A Lei n.º 1/2003, de 6 de
Janeiro[14],
que aprovou o Regime Jurídico do Desenvolvimento e Qualidade do Ensino
Superior, manteve inalterado o regime autonómico das instituições de ensino
superior, apesar de ter aditado duas novas vertentes da autonomia, a cultural e
a patrimonial. Porém, o caráter meramente programático das normas que as
preveem em nada alterou o regime até então em vigor.
Por último, a Lei n.º 62/2007,
de 10 de setembro, que aprovou o RJIES - Regime Jurídico das Instituições de
Ensino Superior, conferiu, pela primeira vez na história do Direito português,
o mesmo grau de autonomia a universidades, institutos universitários,
institutos politécnicos e outras instituições, tanto de ensino universitário
como de ensino politécnico.
Verifica-se, pois, que o
Legislador Constituinte, garantindo a autonomia da universidade, visou a
salvaguarda da liberdade e, por essa via, estabeleceu um entrave às tentativas
ou desejos dos diferentes poderes de nela intervir.
Nessa perspetiva, do mesmo
modo que a doutrina tem vindo a autonomizar a Constituição Económica, a
Constituição Política ou a Constituição de Segurança, entre outras, poder-se-á
discutir se existe uma possível Constituição de «Ciência e Ensino Superior»,
que delimite um perímetro que integre os artigos 43.º, 73.º, n.º 4, 74.º, n.º
2, alínea d), 76.º e 81.º, alínea j).
Apesar de não deter especial relevância do ponto de vista jurídico, porque a Constituição da República Portuguesa é única, e pese embora constitua um núcleo muito residual de normas diretamente aplicáveis, a autonomia pedagógica e didática desta delimitação revela-se pertinente atenta a importância que tem para o futuro dos povos, e consequentemente da pessoa humana e, até, para a própria sustentação do Estado.
Sugestão de citação: R.C.Coelho, "A dignidade da pessoa humana, a liberdade, a autonomia e o poder e na delimitação da missão das instituições de ensino superior", 19th June, 19 de junho de 2022.
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