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O smoking feminino de Yves Saint Laurent e os Direitos das Mulheres:Será a forma como nos vestimos uma questão de Direitos Humanos?

 O smoking feminino de Yves Saint Laurent e os Direitos das Mulheres:

Será a forma como nos vestimos uma questão de Direitos Humanos?

 

Por: Joana Capaz Coelho

Em 1966, o estilista Francês Yves Saint Laurent apresentou pela primeira vez o smoking feminino: um conjunto composto por uma blusa transparente e umas calças de corte masculino. O gesto foi, à época, ousado e profundamente simbólico! Mais do que uma proposta estética, o smoking feminino representava uma mudança cultural e social — um sinal claro de que a mulher já não se limitava a seguir os códigos que lhe eram impostos, inclusive no que dizia respeito à forma de se vestir. Até então, usar calças era, para muitas Mulheres, motivo de censura, discriminação e até de proibição de entradas em certos espaços, como restaurantes e hotéis que restringiam a entrada de mulheres vestidas “fora do padrão”.

Como explica Emma Baxter-Wright: “Designed to make women feel powerful, Saint Laurent provided a modern alternative to a traditional evening gown when he first presented his black tuxedo jacket known as “Le Smoking” in 1966. Superb cutting of a masculine trouser suit juxtaposed with overtly feminine pussy bow silk shirts played with topical ideas of sexual ambiguity and, initially, the elegant tuxedo caused outrage, with women who wore his trouser suits refused service in hotels and restaurants”[1].

Esta passagem evidencia como o smoking feminino não era apenas uma peça de vestuário, mas um gesto de empoderamento feminino e de questionamento das normas sociais rígidas da época. Ao combinar o corte masculino com elementos femininos, Yves Saint Laurent desafiou a perceção tradicional de género na moda. A reação negativa, incluindo a recusa de atendimento a mulheres que usavam calças, ilustra como a sociedade resistia a mudanças de papéis de género e como o vestuário pode ser um instrumento de expressão política e cultural. Este episódio demonstra que a moda pode funcionar como um catalisador de debate social e jurídico sobre igualdade e liberdade individual.

Neste contexto, a moda torna-se uma porta de entrada relevante para refletirmos sobre o Direito. Afinal, o que está realmente em causa quando alguém é impedido de entrar num espaço público por causa da sua roupa? Trata-se de uma questão de liberdade, de igualdade e de dignidade — valores que estão consagrados em diversos instrumentos jurídicos, tanto a nível nacional como internacional.

Começando pelo plano internacional, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH)[2] adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1948, estabelece no seu artigo 1.º que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos”. Este princípio, embora geral, é a base de todos os demais direitos e serve como referência para o combate a qualquer forma de discriminação.

O art.º 2.º da DUDH reforça esta ideia, garantindo que todos têm os mesmos direitos “sem distinção de qualquer espécie, como raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou outra, origem nacional ou social”. Já o artigo 19.º da mesma Declaração reconhece a liberdade de expressão, que inclui não só a liberdade de manifestar opiniões, mas também de se expressar através do vestuário.

Estes princípios ganham maior densidade com a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW)[3], adotada em 1979, que obriga os Estados a adotar políticas públicas e legislação eficaz para eliminar discriminações baseadas no género. Esta Convenção reconhece, em termos práticos, o direito das mulheres à liberdade de escolha — incluindo a forma como se apresentam publicamente — e o direito de aceder a todos os espaços sociais em igualdade de condições com os homens.

Em Portugal, estes compromissos internacionais encontram correspondência direta na Constituição da República Portuguesa (CRP)[4].

O art.º 13.º da CRP consagra o princípio da igualdade, estabelecendo que “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei” (n. º1), e especificando que “ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de (…) sexo (…)” (n.º2).

Esta norma constitucional é particularmente relevante quando falamos de vestuário e género, pois reconhece que a diferença de tratamento com base no que uma pessoa veste pode configurar uma violação do princípio da igualdade. Além disso, o art.º 26.º da CRP protege os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade e à vida privada — direitos que abrangem claramente a liberdade individual de se expressar como se é, seja através da palavra, da atitude ou do estilo.

A evolução legal e constitucional veio, portanto, dar suporte jurídico a uma mudança cultural mais ampla. Se hoje é normal vermos mulheres de fato e calças em qualquer espaço, foi porque, ao longo das décadas, houve uma progressiva afirmação de direitos — por vezes provocada por gestos simbólicos como o smoking de Yves Saint Laurent, que desafiou os limites sociais da sua época. A moda, neste sentido, não é apenas reflexo da sociedade: é também um instrumento de transformação social e política.

Compreender os direitos humanos e fundamentais — os que estão escritos nas leis, nas constituições e nas convenções internacionais — é essencial para garantir que liberdades como estas não sejam vistas como privilégios, mas como aquilo que realmente são: direitos universais, inalienáveis e protegidos. A história do smoking feminino é, portanto, mais do que um episódio marcante da alta-costura. É uma narrativa de resistência, de afirmação e de conquista. É um exemplo claro de como o Direito e a moda se cruzam no mesmo ponto: o da liberdade de ser, de escolher e de estar, em igualdade com todos os outros.


[1]Baxter-Wright, Emma, Little book of Yves Saint Laurent, The story of the iconic fashion designer, p.62.

[2] Declaração Universal dos Direitos Humanos, disponível em: https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos (consultado a 28. 09.2025).

[3] Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, disponível em: https://www.ministeriopublico.pt/instrumento/convencao-sobre-eliminacao-de-todas-formas-de-discriminacao-contra-mulheres-0 (consultado a 28. 09.2025).

[4] Constituição da República Portuguesa, disponível em: https://www.parlamento.pt/Legislacao/paginas/constituicaorepublicaportuguesa.aspx (consultado a 28. 09.2025).



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