Uma reflexão sobre o Direito à Liberdade e as suas restrições
Por: Sofia Di Giovine Freire de Andrade Antunes
Todos nascemos livres e iguais, mas, como afirmou George Orwell, na sua Obra “O Triunfo dos Porcos”, “alguns são mais iguais que os outros”. Esta parece ser a realidade em que vivemos, uma vez que, ainda aos dias de hoje, existem desigualdades flagrantes no tratamento de cada pessoa consoante a sua classe social, política, etnia, orientação sexual, género, religião, entre outros fatores.
O conceito de liberdade é subvalorizado, porque todos os que vivem em sociedades democráticas consideram a liberdade garantida, um bem adquirido sem possibilidade de restrições arbitrárias. No entanto, ainda que achemos que somos livres e iguais, a verdade é que toda a nossa atuação social está dependente de regras, usos e costumes sociais que por vezes nos podem fazer sentir sufocados, mas que, ao mesmo tempo, são fundamentais para uma vivência em comunidade.
O Direito à liberdade encontra assento em diversos Diplomas Nacionais e Internacionais, sendo de salientar o artigo 27º da Constituição da República Portuguesa [1] o artigo 5º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem [2] e os artigos 1º e 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos [3]. É, por isso, um Direito com relevância fundamental porque a liberdade é, provavelmente, um dos bens mais preciosos para todos os Seres Humanos.
A liberdade parece ser algo simples, mas não é. Não é fácil legislar o próprio conceito, porque quando começa a liberdade de uma pessoa, termina a liberdade de outra, e é fundamental haver restrições à mesma, embora tais restrições devam ser excecionais. Neste âmbito, a obra “Siddhartha” do Nobel da Literatura Hermann Hesse, acabou por ter um enorme impacto no conceito de liberdade, uma vez que me fez perceber que, o facto de alguém ter dinheiro e estatuto e se encontrar protegido dos males do mundo, não é o suficiente para que possa viver em pleno a sua liberdade. Neste livro, a personagem principal, Siddhartha, percorre o mundo sozinho, e enfrenta as suas próprias batalhas pessoais, aprendendo a ser livre, e, acima de tudo, a ser feliz. Ao lermos este belíssimo conto, é inevitável que façamos uma reflexão sobre o nosso próprio conceito de liberdade e felicidade, que o Direito, de uma forma ou de outra, tenta assegurar de forma positivada.
A Liberdade está intimamente ligada com
a igualdade, sendo de salientar que a lei reconhece que, em certos casos, deve
existir desigualdade, pois no seu entender, “o igual deve ser tratado como
igual, mas o desigual deve ser tratado como desigual”. Com base nesta
interpretação, vemos, diariamente, atropelos a direitos fundamentais baseados num tratamento desigual de discriminação
negativa que não podem ser aceites e tolerados em sociedades livres e
democráticas, existindo, por conseguinte, uma colisão de direitos, pois quanto
mais livre é uma pessoa de se expressar, mais os outros se sentirão ameaçados
ou importunados.
Assim, a verdadeira liberdade que encontramos em diversos diplomas Internacionais tem origem, acima de tudo, na nossa liberdade física e mental, sem nunca esquecer o respeito pelo espaço dos outros.
Muito recentemente, refleti sobre o conceito de liberdade de cada um e das suas restrições, devido à pandemia do Coronavírus. Durante a pandemia, todos sofremos com as restrições à liberdade de movimento, ao toque e ao contacto pessoal, vimo-nos obrigados a utilizar máscara, e a respeitar as regras de isolamento profilático de forma a protegermos a saúde dos outros. Nunca antes tínhamos passado por restrições semelhantes, e penso que tal teve um impacto muito forte e negativo na nossa saúde mental. Ainda que tais restrições tenham sido fundamentais para acautelar o avanço da doença, é inegável que também colidiram, frontalmente, com a natureza do Ser Humano, com a sua sociabilidade e a sua necessidade de contacto físico, e, acima de tudo, com a sua liberdade mental e física.
Neste contexto, as restrições à liberdade referidas supra chegaram a ser discutidas pelo Tribunal Constitucional, e, inclusivamente, no Acórdão 464/2022 [4], datado 24 de Junho de 2022, três Juízes do Tribunal Constitucional consideraram que os confinamentos que o Governo decretou durante a pandemia são uma “forma de privação da liberdade total”, traduzindo-se na “reclusão no domicílio” e vedaram “quaisquer formas de deslocação para fora da residência”. Os três juízes do TC chegaram mesmo a comparar tais confinamentos à “prisão preventiva ou de reclusão penitenciária”, conforme salientou o Jornal “Observador”[5].
Nesse mesmo Acórdão, o Juiz Conselheiro Pedro Machete explica, no seu voto de vencido, que “(…) o conceito de privação da liberdade será aferido em função do modo como a medida opera o efeito restritivo no sujeito: se for dado local que se determina proibido à pessoa (impedindo o sujeito de para ele se deslocar ou de nele permanecer), então estaremos perante uma medida meramente restritiva da liberdade; se for o sujeito que se diz proibido de realizar ações ambulatórias, então a medida entender-se-á privativa, ainda que essa privação seja meramente parcial, como será o caso quando confira alguma latitude de alívio ao comando proibitivo (v. g., reclusão a um acampamento, a um quarteirão, a um bairro, a um complexo habitacional, etc.) ou seja temporalmente condicionada (v. g., algumas horas ou menos de uma semana)”. Ainda neste Acórdão, o Tribunal Constitucional pronunciou-se sobre a inconstitucionalidade formal, orgânica e material dos confinamentos decretados pelo Governo durante a pandemia do Coronavírus, “por violação do espaço material sujeito a reserva legislativa da Assembleia da República e por o diploma estar desprovido da forma imposta pela Lei Fundamental”. Esta decisão mereceu algumas críticas de diversos Constitucionalistas de renome, que consideraram que poderia pôr em causa a saúde pública e a legislação sanitária, o que poderia criar um perigoso precedente para decisões futuras e uma porta aberta para eventuais violações da lei.
Noutro Acórdão, neste caso, do Tribunal
da Relação de Lisboa, de 9 de setembro de 2021, processo n.º
15677/21.5T8LSB.L1-9, Juiz Relator Guilherme Castanheira, foi discutido se o
isolamento profilático derivado de uma pessoa ter contraído Covid-19, se
poderia equiparar a uma detenção ilegal, e, por conseguinte, estar sujeito a
uma petição de Habeas Corpus [6].
Esta questão é deveras interessante, uma vez que a petição de Habeas Corpus, prevista nos artigos 31º da CRP e 220º e 220º do Código de Processo Penal [7], para os casos de detenção ou prisão ilegal, respetivamente, não foi, na sua origem, pensada para os casos de isolamento profilático, imposto pelas Autoridades de Saúde aquando a contração de doenças infetocontagiosas. No entanto, é de reconhecer que tal é uma questão pertinente, uma vez que é importante saber se se pode utilizar tal providência para este tipo de situações.
Sugestão de citação: S.A.Antunes, "Uma reflexão sobre o Direito à Liberdade e suas restrições", 19th June, 19 de agosto de 2022.
[2]Vide Convenção Europeia dos Direitos do
Homem disponível para consulta online em https://www.echr.coe.int/documents/convention_por.pdf.
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