O Patrocínio Judiciário dos Membros do Governo e dos Altos Dirigentes da Administração Pública quando demandados em virtude do Exercício das suas funções: âmbito de aplicação do decreto-Lei n.º 148/2000, de 19 de junho
O Patrocínio Judiciário dos Membros do Governo e dos Altos Dirigentes da Administração Pública quando demandados no Exercício das suas funções: âmbito de aplicação do decreto-Lei n.º 148/2000, de 19 de junho
Por: Joana Capaz Coelho
Introdução
A
nova conceção do Estado e a corrente internacional da nova gestão pública ou
modelo gestionário (New Public
Management) indo para além das ideologias políticas, colocou o foco na
obtenção de resultados e impôs, às instituições públicas e aos seus
trabalhadores, a prestação de contas (Accountability) em
termos de produtividade, de eficiência e de autonomia, mas, também, em termos
de responsabilização pelos atos praticados.
A
implementação do novo modelo de gestão, iniciada entre os anos 70 e 80 do
século passado, primeiramente na Nova Zelândia e na Austrália, depois, na
Inglaterra e nos Estados Unidos e, subsequentemente, no resto da Europa,
determinou a adoção de novos regimes jurídicos e de múltiplas medidas de gestão
da “cousa pública”.
É
neste enquadramento que ganha relevo o Decreto-Lei n.º 148/2000, de 19 de
julho, aprovado pelo XV Governo Constitucional, que fixa o regime de pagamento
de custas e de patrocínio judiciário dos membros do Governo e dos altos
dirigentes da Administração Pública quando demandados em virtude do exercício
das suas funções.
Âmbito de Aplicação Subjetivo
O artigo 2.º do mencionado
diploma legal, sob a epígrafe Patrocínio Judiciário, dispõe o
seguinte:
"1 - O patrocínio
judiciário dos membros do Governo, quando demandados em virtude do exercício das
suas funções, pode ser assegurado pelos consultores do Centro Jurídico (CEJUR) [1] da Presidência do
Conselho de Ministros [2] ou por advogados
contratados em regime de avença pelo CEJUR, especificamente para a prática
daquele patrocínio.
2 - O patrocínio
judiciário dos demais titulares de cargos públicos referidos no n.º 1 do artigo
1.º pode ser assegurado pelos serviços jurídicos dos respetivos ministérios ou,
na sua falta, por advogados contratados especificamente para a prática daquele
patrocínio, mediante despacho de autorização do respetivo membro do Governo.
3 - O patrocínio
judiciário previsto nos números anteriores depende de requerimento do
interessado”.
As prerrogativas especiais concedidas
pelo artigo 2.º nas ações interpostas por particulares relativas a eventual responsabilidade
civil do Estado, e seus agentes, é reforçada pela exposição de motivos
constante do preâmbulo do diploma, do qual se retira que:
"No que respeita
ao Governo, tem-se generalizado a prática de demandar os seus membros e outros
altos funcionários, juntamente com a Administração Pública. Esta situação é
suscetível de provocar algumas dificuldades, porquanto envolve, na maior parte
dos casos, o pagamento de taxas de justiça e a nomeação de patrono. Tendo em
conta que a mesma se fundamenta na relação entre as funções exercidas e as
ações ou os recursos em causa, é adequado o estabelecimento de mecanismos que
salvaguardem as possibilidades de defesa dos membros do Governo à luz do regime
vigente em matéria de representação do Governo e das demais entidades
públicas".
Beneficiam da prerrogativa de patrocínio
judiciário, atenta a remissão operada pelo n.º 2 do art.º 2.º para o artigo 1.º
(apesar de o artigo 1.º ter sido revogado de forma expressa pelo diploma que
aprova o Regulamento das Custas Processuais, a revogação reportou-se, tão só,
ao regime de isenção de custas, mas subsistiu em vigor na parte que integra o
regime prescrito no artigo 2.º) [3]:
- Os membros do Governo;
- Os titulares de cargos dirigentes dos serviços e organismos da Administração Pública [4]:
- Os encarregados de missão [5]:
- Os membros dos conselhos diretivos dos institutos públicos [6]:
Esta especial prerrogativa é concedida
aos membros do governo e aos altos dirigentes da Administração Pública tendo
presente que estes, devido às funções que ocupam, têm uma maior suscetibilidade
de vir a ser visados em ações interpostas por pessoas que eventualmente possam
ter sofrido danos por ações ou omissões que decorram do exercício das suas
funções e por causa delas. Assim sendo, esta prerrogativa estriba-se na
salvaguarda do próprio interesse público, uma vez que permite que os membros do
governo e os altos funcionários tomem as suas decisões de forma livre e
independente, isto é, que tomem as decisões devidas, sem estarem condicionados
pelo facto de poderem vir a ser visados em ações e terem de pagar as respetivas
custas com o seu património próprio [7] [8]:
Esta ideia é ainda reforçada por Carla Amado Gomes: “Se pensarmos especialmente nos mais altos cargos dirigentes, cujos mandatos se regem pelos tempos das legislaturas, o receio de responsabilização pode ser mais forte do que a vontade de mostrar serviço, deixando ao seu sucessor a tomada de certas decisões com implicações financeiras mais impressivas” [9]:
Esta possibilidade decorre
diretamente do próprio artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
Segundo Canotilho e Vital Moreira:
"De qualquer modo e, não obstante a sua formulação tendencialmente principal, o art.º 22.º transporta regras imediatamente aplicáveis: (1) o Estado e as demais pessoas coletivas públicas são responsáveis, isto é, têm de assumir a responsabilidade civil por lesões causadas aos particulares pelos seus órgãos, titulares ou agentes no exercício dos poderes públicos; (2) o Estado e as demais entidades públicas são diretamente responsáveis, podendo ser demandados em ações de responsabilidade sempre que os seus funcionários ou agentes sejam subjetivamente responsáveis por qualquer dano causado ao particular e independentemente do direito de regresso contra eles; (3) os particulares, cujos direitos, liberdades e garantias foram violados ou sofrerem prejuízos na sua esfera jurídico-subjetiva, podem, observados os pressupostos gerais da responsabilidade civil, acionar judicialmente o Estado com o objetivo de obter a reparação pelas lesões ou prejuízos sofridos” [10] E, ainda, “A consagração da responsabilidade solidária do Estado com os titulares dos órgãos, funcionários e agentes e a sugestão da responsabilidade se articular com a ilicitude da conduta (por ações ou omissões praticadas no exercício das funções e por causa desse exercício) e com a ilicitude do resultado (violação de direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem) justificariam a limitação do princípio geral da responsabilidade aos atos culposos ou, pelo menos, ilícitos, dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes do Estado. Trata-se de uma garantia da responsabilidade destes perante terceiros, pois nos casos em que existir culpa dos titulares de órgãos, funcionários ou agentes, não está excluída a responsabilidade pessoal destes, quer através do seu chamamento à demanda por parte dos lesados, quer através do exercício do direito de regresso por parte do Estado”. [11]
Acrescentam, também, Jorge Miranda e Rui Medeiras que:
“Em contrapartida, a conjugação do princípio da solidariedade com outros princípios constitucionais, designadamente com o princípio da prossecução do interesse público (e o dever de boa administração ou a eficiência da Administração Pública que ele convoca), legitima soluções legais que excluem a solidariedade no âmbito das atuações com culpa leve (aliás, em matéria de direito de regresso, o n. º4 do artigo 271.º parece admitir que a função preventiva e de controlo do bom funcionamento dos serviços públicos que perpassa na regulamentação constitucional da responsabilidade dos servidores do Estado não impede, em absoluto, que a lei regule “os termos em que o Estado e as demais entidades públicas têm direito de regresso contra os titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes”.
"Noutro plano, o princípio de uma Administração responsável que subjaz às diferentes soluções adotadas pela Constituição dificilmente tolera, no plano legal, normas que, em questões conexas, arranquem de um princípio oposto, seja, por exemplo, em matéria de pagamento de custas judiciais (v.g. dispensa de pagamento de custas) [12] nas ações de responsabilidade propostas contra membros do Governo ou quadros dirigentes da Administração Pública por atuações dolosas no exercício das suas funções), seja em relação ao exercício do direito de regresso (v.g. não exercício do direito de regresso em caso de autuações funcionais dolosas)”. [13]
Os demais trabalhadores do Estado não
beneficiam, portanto, da prerrogativa mencionada.
No que concerne aos eleitos locais, o regime previsto no Decreto-Lei n.º 148/2000, de 19 de julho, também não se lhes aplica. Nos termos do Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria da República n.º 81//2007: “ O apoio a conceder aos eleitos locais pelas respetivas autarquias, nos termos dos artigos 5.º, n.º 1, alínea o) e 21.º, ambos da Lei n.º 29/87, de 30 de Junho, depende da verificação cumulativa de dois pressupostos: por um lado, que o ato que deu origem ao processo judicial e às inerentes despesas tenha sido praticado pelo eleito local no exercício das suas funções e por causa delas, e, por outro, que não se prove que esse ato foi praticado com dolo ou negligência". [14][15]
De salientar que a concessão de
patrocínio é, necessariamente, prévia à decisão final do tribunal. É o que
resulta do estipulado na parte final dos n.ºs 1 e 2 do artigo 2.º, na medida em
que a entidade pública, no caso a JurisAPP, “assegura o patrocínio
forense através da designação de um elemento dos seus recursos humanos próprios
ou por via da contratação de um advogado, em regime de avença, para o efeito”. [16].
Deste modo, a individualidade com direito
à prerrogativa de patrocínio judiciário, quando o solicite, fica dependente da
designação de consultor da JurisAPP ou da contratualização pela referida
entidade para a função específica de um mandatário forense em regime de avença.
Não sendo, assim, legalmente impossível a atribuição de qualquer direito ao pagamento ou reembolso por despesas suportadas com os honorários de mandatário contratado diretamente pelo próprio.
Âmbito de Aplicação Objetivo
O regime de patrocínio judiciário previsto no sempre referido artigo 2.º reporta-se a casos em que os titulares da prerrogativa “foram pessoalmente demandados em virtude do exercício das suas funções".[17] Prerrogativa que é concedida por forma a garantir a independência decisória dos membros do Governo, dos agentes ou trabalhadores públicos como vimos supra.
A conexão do ato lesivo com o exercício de funções é um pressuposto associado ao regime de responsabilidade civil sob forma solidária do Estado relativamente a ações e omissões dos seus agentes na função administrativa (n.º 2 do artigo 8.º da Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro - Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Pessoas Coletivas de Direito Público (RRCEEEP) e da responsabilidade civil exclusiva do Estado no caso das ações e omissões ilícitas dos seus órgãos, funcionários ou agentes cometidas com culpa leve, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício (n.º 1 do artigo 7.º do RRCEEEP). [18]
Assim, o artigo 2.º faz depender a
atribuição do patrocínio judiciário do preenchimento dos seguintes
pressupostos:
- Que quem solicita o patrocínio judiciário sejam “titulares de cargos públicos referidos no n.º 1 do artigo 1.º;
- Que os requerentes
sejam “demandados em virtude do exercício das suas funções”.
De acordo com o expendido no Parecer n.º
81/2007 do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República:
“Acerca da
responsabilidade civil extracontratual dos titulares dos órgãos e agentes da
Administração por atos de gestão pública já escrevia Marcello Caetano que devia
fazer-se uma distinção entre atos funcionais e atos pessoais.
São atos
funcionais todos aqueles que, embora ilícitos, sejam praticados durante o
exercício das funções do seu autor e por causa desse exercício; pelos danos que
produzirem é responsável a pessoa coletiva de direito público a que pertença o
órgão ou agente.
São atos pessoais
todos os outros isto é, os que forem praticados fora do exercício das funções
do seu autor ou que, mesmo praticados durante tal exercício e por ocasião dele,
não forem todavia praticados por causa desse exercício; pelos danos que produzirem
é responsável, única e exclusivamente, a pessoa do seu autor».
E, depois de se
interrogar em que casos se podia dizer, de uma maneira geral, que um órgão ou
um agente se comporta, na prática de um facto ilícito, dentro dos limites das
suas funções, ou, pelo contrário, excedendo esses limites, afirma que, após a
publicação do Decreto–Lei n.º 48051, de 21 de Novembro de 1967, a distinção
entre o funcional e o pessoal, para efeito de responsabilizar a pessoa coletiva
de direito público ou o autor do facto ilícito, tinha de continuar a fazer -se,
mas que, no entanto, tinha de ser transportada do plano da culpabilidade, em
que antes se situava, para o plano da ilicitude, em que agora se devia colocar.
«Já não interessa averiguar se houve culpa funcional ou culpa pessoal, mas
antes se o facto ilícito é um ato funcional ou pessoal, ou seja, se o facto
ilícito foi ou não praticado no exercício das funções do seu autor e por causa
desse exercício. Não importa, pois, para este efeito, apurar se houve falta do
serviço e zelo do titular do órgão ou agente ou se, pelo contrário, houve
funcionamento normal do serviço, mas desprezo do titular do órgão ou agente
pelos deveres do seu cargo.
O que importa é
delimitar objetivamente as funções do autor do facto ilícito e verificar se ele
o praticou no exercício de tais funções e por causa desse exercício».
Para que um ato possa ser considerado «funcional» é, pois, necessário que seja praticado pelo titular de um órgão ou agente de uma pessoa coletiva de direito público, no exercício das suas funções e por causa delas, sendo necessário apurar se o autor do facto ilícito atuou ou não no exercício das suas funções e por causa desse exercício, ou seja, se o facto praticado representou o legítimo exercício da competência do seu autor para fins de interesse público ou, pelo contrário, um abuso de autoridade, exorbitando das suas funções”.[19]
Para Gomes Canotilho e Vital Moreira:“Além de se tratar de ações ou omissões jurídico- públicas (não de atos de gestão privada), exige-se que elas tenham sido praticadas no exercício de funções ou por causa desse exercício. Impõe-se, assim, uma relação de conexidade entre o exercício de funções e as ações ou omissões lesivas, o que significa a indispensabilidade de uma conexão interna ou material entre ato-função - e resultado lesivo. Requer-se que a ação ou omissão caiba no âmbito do escopo funcional justificativo da boa-fé da confiança do cidadão lesado. Não é suficiente que a ação ou omissão tenha sido praticada por ocasião do exercício da função («critério da mera ocasionalidade») ou que este exercício constitua a condição necessária para a prática de ações ou omissões sem qualquer ligação funcional («critério da ocasionalidade necessária»)".[20]
Aliás, “a conexão do ato lesivo com o exercício de funções constitui um pressuposto material quer da responsabilidade civil das entidades públicas quer da responsabilidade direta dos funcionários e agentes que decorre do próprio texto constitucional, tal como resulta dos artigos 22.º e 271.º , n.º 1 da CRP”.[21]
Patrocínio judiciário e responsabilidade criminal e financeira
O preâmbulo do Decreto-Lei n.º 148/2000,
de 19 de julho, refere que “No que respeita ao Governo, tem-se generalizado
a prática de demandar os seus membros e outros altos funcionários, juntamente
com a Administração Pública”, tendo sido esta crescente demanda dos membros
do Governo e de outros altos funcionários da Administração Pública (por prática
de atos de gestão pública e privada), juntamente com esta, nas jurisdições
cíveis e administrativas, que impulsionou a sua adoção.
Expressões como “demandar” (utilizadas
no preâmbulo) e “demandados” (n.º 1 do artigo 2.º) parecem pressupor a
interposição de uma ação contra os ali referidos, dado que no âmbito do
processo-crime apenas se é demandado na ação cível enxertada no processo crime,
sendo que neste existe a “constituição de arguido”, “acusação”, “pronúncia”,
“condenação”, motivo pelo qual o apoio judiciário previsto neste diploma só se
deverá aplicar a situações de responsabilidade civil e não de responsabilidade
criminal.
Acresce que não existe fundamento material para uma discriminação positiva dos titulares e trabalhadores públicos previstos no artigo 2.º do Decreto-lei nº 148/2000, de 19 de julho, face a todos os restantes trabalhadores públicos, em matéria de patrocínio judiciário para intervenção em processo penal relativo a eventuais crimes praticados no exercício das respetivas funções [22].É, aliás, o que que resulta da interpretação da norma citada em conformidade com o artigo 22.º da Constituição [23] [24] e da aplicação do princípio da igualdade consagrado também na Constituição, no seu artigo 13.º [25]
Deste modo, o Decreto-Lei nº 148/2000,
visou, tão só, estabelecer uma prerrogativa especial de patrocínio judicial no
quadro da função administrativa. Aliás, estando a responsabilidade penal
vinculada, entre outros, aos princípios da culpa e da tipicidade, a criação de
um mecanismo que de algum modo pudesse “facilitar” a violação da lei penal não
poderia ser adotado por diploma do Governo, dado que constitui matéria de
reserva da Assembleia da República.
De acordo com o dispõe o Código Penal no
seu artigo 11.º, n.º 1, “Salvo o disposto
no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas
singulares são suscetíveis de responsabilidade criminal” e no n.º 2: “As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de
pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de
organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes
previstos nos artigos 144.º-B, 150.º, 152.º-A, 152.º-B, 156.º, 159.º e 160.º,
nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º,
171.º a 177.º, 203.º a 206.º, 209.º a 223.º, 225.º, 226.º, 231.º, 232.º, 240.º,
256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 359.º, 363.º,
367.º, 368.º-A e 372.º a 377.º, quando cometidos:(…)”, o Estado não é
suscetível de ser responsabilizado criminalmente. Assim sendo, não será
possível fazer uma ligação entre o crime praticado no exercício de funções e a
pessoa coletiva em nome do qual a pessoa singular exerce funções.
Deste modo, os membros do governo e os altos funcionários do Estado abrangidos pelo disposto no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 148/2000, quando sejam penalmente “demandados” por eventuais crimes que cometam no âmbito do exercício as suas funções, poderão beneficiar de apoio judiciário nos termos do artigo 61.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Penal, mas não beneficiam da prerrogativa especial prevista no artigo 2.º do Decreto-Lei supramencionado [26].
Situação diversa ocorre quando, nos termos previstos na lei, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido, não no respetivo processo penal, o que é a regra, mas, em separado, perante o tribunal civil (cfr. artigo 71.º do Código de Processo Penal) [27] . Nesta circunstância, os membros do Governo, os titulares de cargos dirigentes dos serviços e organismos da Administração Pública, os encarregados de missão, os membros dos conselhos diretivos dos institutos públicos, ainda que não sejam visados na ação penal, podem ser demandados em virtude do exercício das suas funções no processo penal, relativamente a eventual responsabilidade civil abrangida pelo artigo 22.º da CRP, podendo, então, beneficiar de patrocínio judiciário [28].
O patrocínio Judiciário previsto no Decreto-Lei nº 148/2000 também não abrange ações em processos instaurados no Tribunal de Contas relativos a eventual responsabilidade por infrações financeiras [29].
O regime procedimental da responsabilização por eventuais infrações financeiras [30] é absolutamente autónomo do processo penal quanto às regras substantivas, processuais e de competências judiciárias.
O âmbito objetivo do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 148/2000, tendo por referência a responsabilidade civil nas relações externas e excluindo a responsabilidade penal, implica que a prerrogativa de patrocínio forense conferida por essa norma não abranja os procedimentos relativos a responsabilidade financeira objeto da jurisdição do Tribunal de Contas [31], atenta a distinção conceptual entre a responsabilidade prevista no artigo 22.º da Constituição [32] relativa a deveres de indemnização do Estado relativamente a terceiros, e a responsabilidade financeira prevista no artigo 214.º, n.º 1, al. c), da CRP [33].
Na síntese de António Cluny [34], a responsabilidade financeira «que presentemente vigora constitui-se, claramente, em todas as situações como uma responsabilidade delitual fundada na culpa, tendo, no que se reporta à chamada responsabilidade reintegratória, como pressuposto o dano ou o prejuízo efetivo causado ao Estado pelo agente da infração financeira».
A responsabilidade financeira por
infrações financeiras, não compreende, nem poderia compreender, solidariedade
entre agentes da infração e o Estado ou outra entidade pública.
Do mesmo modo que não há qualquer fundamento para que haja um privilégio em matéria de patrocínio judicial de membros do governo e dos altos dirigentes do Estado. [35]
Por último, saliente-se que o Estado deve ser reembolsado das despesas suportadas com o patrocínio judiciário sempre que fique provado que que não existiu nexo funcional entre as funções exercidas pelos membros do Governo, pelos titulares de cargos dirigentes dos serviços e organismos da Administração Pública, pelos encarregados de missão, ou pelos membros dos conselhos diretivos dos institutos públicos e os atos objeto das ações ou recursos em causa – é o que resulta, nomeadamente, da interpretação sistemática- teleológica do n.º 3 do artigo 4.º do Regulamento das Custas Processuais.
A prerrogativa conferida a membros do Governo, titulares de cargos dirigentes dos serviços e organismos da Administração Pública, encarregados de missão e membros dos conselhos diretivos de institutos públicos de requerer patrocínio judiciário ao abrigo do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 148/2000 quando “demandados em virtude do exercício das suas funções” relaciona-se com a suscetibilidade de serem sujeitos passivos de ações de responsabilidade civil por atos praticados no exercício de funções e por causa delas.
Assim, e em jeito de Conclusão:
A
prerrogativa conferida a membros do Governo, titulares de cargos dirigentes dos
serviços e organismos da Administração Pública, encarregados de missão e
membros dos conselhos diretivos de institutos públicos têm de requerer patrocínio
judiciário ao abrigo do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 148/2000 não abrange a
intervenção como arguidos em processo penal.
Os
membros do Governo, titulares de cargos dirigentes dos serviços e organismos da
Administração Pública, encarregados de missão e membros dos conselhos diretivos
de institutos públicos podem beneficiar do patrocínio judiciário ao abrigo do
artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 148/2000 quando, não tendo a posição de arguidos,
sejam demandados por via de pedido civil interposto no processo penal, ao
abrigo do artigo 71.º do Código de Processo Penal, sobre factos praticados no
exercício de funções relativamente aos quais exista responsabilidade solidária
do Estado nas relações externas (ainda que essa pessoa coletiva não seja
sujeito passivo visado pela demanda civil concretamente formulada).
O Estado
deve ser reembolsado das despesas suportadas com o patrocínio judiciário sempre
que fique provado que que não existiu nexo funcional entre as funções exercidas
pelos membros do Governo, pelos titulares de cargos dirigentes dos serviços e
organismos da Administração Pública, pelos encarregados de missão, ou pelos
membros dos conselhos diretivos dos institutos públicos e os atos objeto das
ações ou recursos em causa – é o que resulta, nomeadamente, da interpretação
sistemática- teleológica do nº 3 do artigo 4º do Regulamento das Custas
Processuais.
Sugestão de citação: J. C. Coelho, "O Patrocínio Judiciário dos Membros do Governo e dos Altos Dirigentes da Administração Pública quando demandados em virtude do Exercício das suas funções: âmbito de aplicação do decreto-Lei n.º 148/2000, de 19 de junho", 19th June, 4 de julho de 2022.
[3] Cfr. alínea m) do n.º 2 do art.º 25.º do Decreto-Lei n.º 34/2008,
de 26 de fevereiro, diploma que aprovou o Regulamento das Custas Processuais. A
revogação teve como única intenção a de centralizar num único diploma todas as
isenções de custas.
[4] Cfr. n.º 1 do art.º 33.º do Estatuto do Pessoal Dirigente dos
serviços e organismos da administração central, local e regional do Estado,
aprovado pela Lei n.º 2/2004, de 15 de janeiro, alterado pela Leis n.º 51/2005,
de 30 de agosto, n.º 64-A/2008, de 31 de dezembro (LOE/2009), n.º 3-B/2010, de
28 de abril (LOE/2010) e pela Lei n.º 64/2011, de 22 de dezembro, que o
republicou.
[5] Cfr. art.º 28.º da Lei n.º 4/2004, de 15 de janeiro, que estabelece
os princípios e normas a que deve obedecer a organização da administração
direta do Estado, alterada pelas Leis n.º 51/2005, de 30-08-2005; n.º
64-A/2008, de 31-12-2008, n.º 64/2011, de 22-12-2011.
[6] Cfr. atual redação do n.º 4 do art.º 25.º da Lei-Quadro dos
Institutos Públicos, originariamente aprovada pela Lei n.º 3/2004, de 15 de
janeiro.
[7] “Os eleitos locais são
chamados a desempenhar funções públicas, em prol da comunidade (no interesse
público), pelo que bem se compreende que beneficiem do apoio jurídico quando,
por causa do exercício dessas funções, sejam parte em qualquer processo
judicial. A lei procura assegurar a defesa dos seus direitos, dispensando-os de
suportarem os inerentes encargos, mas apenas nos processos judiciais
diretamente relacionados com os cargos que ocupam (no exercício das funções
para que foram eleitos). É, pois, necessário que se verifique um nexo causal
entre as funções exercidas pelo eleito local e o respetivo processo judicial.” Vide Parecer
n.º 81/2007, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República,
publicado no Diário da República, II ª Série, n.º 196, de 9 de outubro.
[8] Ora, de
facto, o exercício de funções governativas traz aos respetivos titulares
algumas regalias [32], as quais, porém, não têm qualquer reflexo na situação em
apreço. (…) Decreto-Lei n.º 148/2000, de 19 de julho, que fixa o regime de
pagamento de custas e de patrocínio judiciário dos membros do Governo e dos
altos dirigentes da administração Pública, quando demandados em virtude do
exercício das suas funções, estabelecendo a dispensa total de custas e
assegurando a nomeação, os honorários e despesas do patrono”. Vide Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria
Geral da República n.º 110/2003, de 4-12-2003.
[9] Gomes, Carla Amado, A responsabilidade pessoal e institucional
do dirigente da Administração Pública no quadro da Lei 67/2007, de 31 dezembro,
Revista de Ciências Empresarias e Jurídicas, n.º 15, 2009, página 16.
[13] Miranda, Jorge;
Medeiros, Rui, ob. cit., p. 215.
[14] Vide Parecer n.º 81/2007, do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República, publicado no Diário da República, IIª Série,
n.º 196, de 9 de outubro, acessível em: http://www.ministeriopublico.pt/pareceres-pgr/1675.
O parecer versa sobre o seguinte: “O Presidente da C.P.S./P.S.D. de Felgueiras
informou Vossa Excelência de que a Câmara Municipal daquela cidade estaria a
pagar quantias muito avultadas à respetiva Presidente e a outros arguidos nos
denominados processos do «saco azul» e do «Futebol Clube de Felgueiras», para
estes fazerem face às despesas resultantes daqueles processos, nomeadamente com os seus advogados, e
solicitou que fosse mandado averiguar essa matéria”.
[16] De acordo com a
doutrina expendida no Parecer
n.º 81/2007, do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República,
publicado no Diário da República, IIª Série, n.º 196, de 9 de outubro, no caso dos eleitos locais “A doutrina tem entendido que o pagamento das
despesas só deve ser feito no final do processo porque, por um lado, só então
poderá saber-se qual a quantia efetivamente despendida e, por outro, a
inexistência de dolo ou negligência só poderá ser determinada, em princípio,
após o julgamento.”
[17] Como então referido no
art.º 1.º do Decreto-Lei n.º 148/2000, entretanto revogado, mas que se mostra
determinante para integrar a previsão do art.º 2.º sobre o patrocínio judicial.
[19] “Da mesma forma, não deverão as autarquias suportar
aqueles encargos, ainda que o eleito local tenha atuado no exercício das suas
funções e por causa delas, quando se prove que agiu com dolo ou negligência. Os
titulares dos órgãos das autarquias locais, como dissemos, não respondem
civilmente pelos atos ilícitos praticados com culpa leve no exercício das suas
funções. Por isso, deve entender-se que, nestes casos, também lhes deve ser
concedido o apoio, pois, embora o artigo 21.º da Lei n.º 29/87 se refira à
“negligência”, deverá considerar-se aplicável apenas à culpa grave. Se o eleito
local não responde civilmente perante terceiros pelos atos praticados com culpa
leve no exercício de funções, nada justificaria que não lhe fosse concedido o
apoio numa ação de indemnização intentada contra ele com fundamento em culpa
grave e se viesse a provar apenas a culpa leve.” Vide Parecer n.º 81/2007, do Conselho Consultivo da
Procuradoria-Geral da República, publicado no Diário da República, II ª Série,
n.º 196, de 9 de outubro.
[29] De acordo com o artigo 1.º, n.º 1 e artigo 59.º da LOPTC, o Tribunal de Contas é a única entidade competente para a efetivação da responsabilidade financeira.
[31] Vide Artigo 58.º, n.º 3, da LOPTC.
2 - Os dirigentes e os trabalhadores das entidades públicas são responsáveis disciplinar, financeira, civil e criminalmente pelos seus atos e omissões de que resulte violação das normas de execução orçamental, nos termos do artigo 271.º da Constituição e da legislação aplicável.
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