As Leis de Lídia Poët e o exercício da advocacia:
Sobre Igualdade de Género, Coragem e Resiliência
Por: Joana Capaz Coelho
A história da luta das mulheres pela igualdade na advocacia é marcada por coragem, perseverança e uma determinação inabalável para derrubar barreiras. Em Portugal, como em muitos outros países, o caminho das mulheres na advocacia tem sido uma conquista gradual num espaço que durante muito tempo as excluiu. Hoje, embora a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagre a igualdade de género, as advogadas ainda enfrentam obstáculos silenciosos – preconceitos subtis e barreiras invisíveis que limitam o seu crescimento e influência na profissão.
A série da Netflix As Leis de Lídia Poët,
baseada em factos verídicos, narra a história inspiradora da primeira mulher a
obter a licença para advogar em Itália. Como símbolo de resistência, Poët
retrata o desafio de ser mulher numa profissão dominada por homens no final do
século XIX, quando o género era fundamento para excluir as mulheres da prática
da advocacia.
Em Portugal, a realidade das mulheres na
advocacia teve um início semelhante, marcado por obstáculos e desafios que se
têm vindo a transformar ao longo do século XX e XXI. Na verdade, foi apenas no
final do século XIX e início do século XX que as mulheres começaram a
conquistar espaço na Ordem dos Advogados, desafiando o paradigma que restringia
a profissão ao género masculino.
Regina Quintanilha tornou-se pioneira,
ao ser a primeira mulher a advogar em Portugal. Em 15 de novembro de 1913, o
jornal A “Luta” descrevia a sua estreia em tribunal do seguinte modo: “Inquiriu as testemunhas e (…) ao ser-lhe
dada a palavra, d’ella usou durante algum tempo com muito brilhantismo,
deixando em todos a impressão de que de futuro, a dedicar-se à carreira da
Advocacia, muito há a esperar da sua intelligência”[1]. Este ano marcam-se mais de
110 anos desde este marco histórico, que abriu caminho para a inclusão das
mulheres na profissão.
A persistência e o avanço nos Direitos
das Mulheres foram determinantes para que estas pudessem advogar livremente e,
mais tarde, aceder a posições de decisão. Atualmente, a igualdade de género
está consagrada na legislação portuguesa, refletindo-se numa presença feminina
cada vez mais expressiva em diversas áreas do Direito. Nos termos do artigo
13.º da CRP “todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais
perante a lei”[2],
proibindo-se qualquer discriminação baseada no género. Desta forma, a
Constituição garante a igualdade de direitos para todas as pessoas, incluindo o
direito de aceder a profissões em condições de igualdade, como a advocacia. No
entanto, este ideal de igualdade enfrenta desafios práticos na realidade da
profissão.
Embora as mulheres representarem mais de
metade dos advogados em exercício, este número revela-se bem mais baixo quando
olhamos para os cargos de liderança. Dados recentes indicam que cerca de 57%
dos advogados em Portugal são mulheres, um sinal positivo de paridade no acesso
à profissão. Contudo, essa representatividade feminina é menor nos níveis
superiores: apenas 34% dos cargos de liderança nas sociedades de advogados são
ocupados por mulheres[3].
Para ilustrar a persistência desses
desafios, recorremos novamente à série As Leis de Lídia Poët, cujas
cenas espelham os preconceitos de uma época que, de certa forma, ainda ressoam
na atualidade. No primeiro episódio, o irmão de Lídia expressa surpresa ao
vê-la inscrita na Ordem: “Quando te vi inscrita na Ordem, fiquei incrédulo. O
mundo está a mudar”. Lídia responde com determinação: “Tenho habilitações há 3
meses. E tenho um caso importante”. Este diálogo reflete a experiência de
muitas mulheres que, apesar das qualificações e competência, são recebidas com
surpresa ou ceticismo.
Noutro momento, Lídia confronta o Procurador
num caso e recebe um comentário desdenhoso: “Até um assassino como Balocchi
tem direito a um advogado a sério.” Ela prontamente responde: “Tem medo
de perder com uma mulher?”, ao que ele replica, “Temo apenas o
descrédito que recairá sobre a profissão, se as mulheres se começarem a
envolver.” Esta cena destaca o preconceito de que a participação das
mulheres na advocacia poderia comprometer a “seriedade” da profissão.
A batalha de Lídia culmina com a decisão
do Tribunal de recurso, que anula a sua inscrição na Ordem dos Advogados.
Durante o julgamento, é-lhe dito: “A advocacia é um ofício onde as mulheres
não se devem imiscuir. Na verdade, seria impróprio e terrível ver mulheres em
discussões que vão além dos limites que o sexo frágil deve respeitar. Não precisamos
de mencionar o risco para a seriedade das sentenças, se, sobre a toga do
advogado, se usasse trajes estranhos e bizarros que comumente a moda impõe às
mulheres. Por isso, não devemos pedir que a mulher cumpra funções para as quais
não está adequada pela sua constituição orgânica ou que a impeçam de realizar e
levar a cabo outras tarefas da sua específica competência, sobretudo no âmbito
familiar.” Esta argumentação, baseada em conceitos ultrapassados de género,
reflete a mentalidade que, durante séculos, limitou a atuação das mulheres na
esfera pública e profissional.
Estes episódios na vida de Lídia Poët
espelham os desafios enfrentados por mulheres em várias partes do mundo e servem
de lembrete sobre as conquistas alcançadas até ao presente, mas também sobre o
caminho que ainda há a percorrer. Em Portugal, apesar de representarem cerca de
metade dos profissionais inscritos na Ordem dos Advogados, as mulheres ainda
enfrentam barreiras para ascender a posições de liderança nos grandes
escritórios. Este “teto de vidro” persiste, levantando questões sobre a
igualdade efetiva na profissão.
As histórias de Lidia Poët e de Regina
Quintanilha simbolizam o legado de todas as advogadas que desafiam barreiras. Mas como Eleanor Roosevelt afirmava, “Lutamos
para que os nossos sonhos se tornem realidade e, ao fazê-lo, criamos esperança
para o futuro”. Que cada mulher na advocacia, ao reivindicar o seu lugar,
fortaleça a justiça, a inclusão e a igualdade para todas e todos, honrando o
espírito de luta que tantas mulheres nos legaram.
[1] cfr.
https://portal.oa.pt/comunicacao/noticias/2017/03/homenagem-dra-regina-quintanilha-primeira-advogada-portuguesa/
(consultado a 18/11/2024).
[2] Vide,
https://www.parlamento.pt/Legislacao/Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx (consultado a 18/11/2024).
[3] Cfr. https://podinformar.pt/2024/03/02/100-anos-de-mulheres-na-justica/
(consultado a 18/11/2024).
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